REVISTA DUAS RODAS N 196 - DEZEMBRO – 1991 MULAS DE AÇO Veja que incrível: motos de 125cc chegam a transportar até mais de 500 kg de carga na fronteira entre o Brasil e o Uruguai É ponto de honra para eles. A frase "não deu para levar na moto" não existe. São cerca de 60 motociclistas que levam diariamente mercadorias entre as cidades de Aceguá (RS), no Brasil, e Aceguá, no Uruguai – isso mesmo, elas têm o mesmo nome e ficam bem na fronteira entre os dois países.
As mercadorias saem do Brasil, vindas geralmente de Bagé (a 70 km da fronteira) e são levadas, na sua maior parte, para Melo, no Uruguai (67 km da fronteira). Tudo pode ser transportado, desde óleo diesel, gasolina, bujões de gás, açúcar, Coca – Cola, geladeiras, móveis... enfim, qualquer coisa. É um "comércio informal" sem pagamentos de impostos na fronteira, já que os preços no Brasil são bem mais baixos (até três vezes menos, como no caso da gasolina). Entre os motociclistas que fazem o serviço, 95% são uruguaios e 90% das motos são Honda CG 125 brasileiras adaptadas a quadros de outras pequenas motos. O melhor dos "Panchos" (vamos chamá-los assim) tem fama de carregar 12 bujões de gás em uma CG. Outro é capaz de levar 400 litros de óleo diesel. Mas a maioria opta pela variedade: galão de 30 litros de gasolina à frente da moto; comida, como 10 dúzias de ovos, açúcar, arroz, 20 kg de cebolas no "bagageiro", 6 galões de 50 litros de óleo diesel na "garupa", 4 bujões de gás (dois de cada lado para baixar o centro de gravidade), entre outras coisas. O caminho que seguem sempre significa um trecho de 40 km de asfalto, onde as motos rodam em terceira marcha, acelerador todo aberto e velocidade máxima em torno dos 50 km por hora ( pois o peso é simplesmente absurdo ) com algumas chegando a mais de 500 kg, contando com o "Pancho" como piloto. Mas há também um trecho de cerca de 12 km por trilhas de terra. Aí fica valendo a história do elefante: "se deitar, não levanta". Só com ajuda de , no mínimo, três motociclistas. Conforto é uma palavra que eles desconhecem. Como todo espaço deve ser usado para carga, sobra apenas um pequeno local onde antes havia o tanque de combustível ( veja no box a "transformação" da moto ), onde um "Pancho" se acomoda. Os ganhos também não chegam a ser expressivos, cerca de Cr$ 5 mil por viagem. Para melhorar o "caixa", cada "Pancho" chega a fazer três viagens por dia. Os "motoboys" que fazem entregas nas grandes cidades brasileiras, e que são considerados "loucos" por muita gente, comparados com os "Panchos", levam uma vida tranquila. Mas os "Panchos, por sua vez, também são considerados privilegiados. Fazendo o mesmo serviço na fronteira há também os bicicleteiros, que chegam a levar 4 bujões de gás e pedalam até 50 km por dia e ainda ganham menos: cerca de Cr$ 4 mil por viagem. João Gonçalves Filho, Especial para Duas Rodas. Desafio ao Bom Senso Se um engenheiro projetista de motos visse um dos "modelos" usados pelos "Panchos", ficaria de cabelos em pé. Conforto e estabilidade são secundários, sem dizer em questão de segurança, já que muitos chegam a viajar à noite, sem farol ou qualquer sinalização. Mas os acidentes, segundo os próprios Panchos, são mínimos, e a maioria acontece nas trilhas de terra, caminho que fazem para desviar da aduana uruguaia – onde teriam que pagar impostos pelos produtos. A primeira parte da "transformação" da moto é cortar o tanque de combustível ao meio e soldá-lo, com o Pancho sentando onde seria a outra metade – para aumentar a estabilidade da roda dianteira, segundo eles. Com isso, a garupa fica com um espaço maior. O tanque passa a ter a capacidade de 5 litros, o que só dá para uma viagem de ida e volta, sem reabastecimento. O guidão também é modificado para, na sua parte superior, ser colocado um galão de 30 litros de gasolina. Na garupa são adaptados estrados (ou suportes) de madeira que levam dois bujões em cada lado. Para suportar o peso, a moto conta com quatro amortecedores ( dois de cada lado ). Chamadas de "mulas de aço" pelos próprios Panchos, as motos representam o ganha – pão de dezenas de pessoas nessa região pobre. A luta pela subsistência os faz superar os limites do bom senso. J.G.F. FIM