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Mistérios do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha
REVISTA DUAS RODAS N 292 – 1999 JOÃO GONÇALVES FILHO, COLABORADOR DE DUAS RODAS, CONTA COMO FOI DESCOBRIR OS MISTÉRIOS DO CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA, NA ESPANHA, PILOTANDO UMA BMW R 1200 C. RODOU MAIS DE 2.000 KM PELAS TRÊS ROTAS MAIS CONHECIDAS. ACOMPANHE. Desenvolvi uma maneira original de preparar meu lanche: esquentava o pão, embalado em papel alumínio, deixando-o sobre o cilindro do motor da moto. Durante três dias, repeti esse ritual cada vez que encontrava uma sombra para fugir do sol forte, em pleno verão espanhol de 99. Os peregrinos lançavam olhares curiosos em minha direção, atraídos pela cena
inusitada e pela imponente BMW R 1200 C, a "Cruiser". Muitos me saudavam com o balançar do cajado, um instrumento inseparável e tradicional para os que têm pela frente uma árdua caminhada de 813 km – para quem parte da França rumo à Espanha – no místico caminho de Santiago de Compostela. Muita gente passou por mim e era comum reencontrá-los, mais à frente, andando pelo acostamento da rodovia. Quando o caminho se transformava em pequenas trilhas, eu os "abandonava", já que nenhum veículo motorizado tem acesso à esses trechos. Seguia em frente pensando que muitas daquelas pessoas iriam caminhar acima de seu limite, levadas pela fé – algumas, chegando ao fanatismo. Quando vem a exaustão, contam apenas com a endorfina ( uma substância produzida pelo corpo para amenizar a dor muscular ) que os faz "conversar com Deus". Outros voltam ao passado ou viajam ao futuro. Em contato com alguns peregrinos, ouvi relatos sobre a solidão – também um grande obstáculo. Mas nem todos sofrem tanto. Optam por começar a caminhada na Espanha, como em Ponferrada, à 230 km de distância de Santiago, ou mesmo em Lugo, à "apenas" 107 km. Para mim, o caminho não seria tão árduo. Tinha o vento para fazer carinho no rosto cada vez que acelerava forte a BMW C 1200. Apesar da comodidade, quando viajo de moto, consigo manter o "espírito aberto". Isto é uma característica imprescindível para entender o motivo que leva tanta gente a percorrer o Caminho de Santiago de Compostela, seja começando pela França, pela Espanha ou por Portugal, a terceira rota mais conhecida. NOS PIRINEUS O ponto de partida da primeira viagem com a BMW em direção à Santiago foi a pequena Saint Jean-Pied-de-Port, encravada aos pés das montanhas dos Pirineus, na França, próxima à fronteira com a Espanha. Este foi o primeiro dos três caminhos que percorri de moto até a cidade mística, o mesmo feito pelo escritor ( e mago, segundo ele ) Paulo Coelho, autor do best-seller " O Diário de um Mago", baseado na caminhada. O livro fez muito sucesso no Brasil ( e em muitos outros países também ), sendo o maior responsável pela popularização do Caminho de Santiago entre os brasileiros. No entanto, para conhecer e sentir a mística energia da caminhada até Santiago de Compostela não basta apenas seguir as placas. O mais importante é ler sobre a história do trajeto feito por Tiago, um dos apóstolos de Cristo ( veja box ). Assim, o viajante irá conhecer os lugares e os fatos que ali ocorreram. Ainda recomendo ao candidato que fique um ou dois dias na cidade de partida para, além de ler muito, "entrar no clima" da viajem. Nos Centros de Apoio ao Peregrino é possível encontrar uma vasta literatura a respeito. Além disso, conversar com as pessoas é o melhor jeito de entrar no clima. O caminho mais tradicional de Santiago de Compostela corta o interior da Espanha, por sua parte Norte, através de Pamplona, Burgos, León, Ponferrada e Lugo. Esta são as principais cidades. Porém, para conhecer os mistérios do Caminho, é necessário visitar as pequenas vilas. Lá há ruínas seculares, testemunhas silenciosas da passagem de milhões de peregrinos. POLÍCIA AUTÔNOMA O ar estava bastante seco e, quando parava em frente às enormes plantações à beira da rodovia, a visão do vento balançando os pés de trigo aos poucos me hipnotizava, transmitindo um enorme bem – estar. A razão deste sentimento começou quando iniciei a aventura. Me senti como uma criança ganhando um presente, pois há dois anos não viajava de moto. Assim que entrei na Espanha, no estado de Navarra – próximo ao conturbado "país Basco", sede do grupo separatista ETA – encontrei uma polícia bastante estranha. Além do uniforme vermelho, têm o que chamam de "direito floral" e, por conta disso, não são ligados diretamente ao restante da polícia espanhola. Esta autonomia nasceu há mais de 1.000 anos, quando a região era uma nação soberana, que lutou muito contra os árabes. Depois que Navarra foi anexada à Espanha, os soldados mantiveram os privilégios – que são honrados até hoje pelo governo espanhol. Séculos atrás, ainda tinham a obrigação de proteger os peregrinos. Hoje, trocaram os cavalos por imponentes BMW. VIVA O FUTEBOL ! As estradas da Espanha são um convite a acelerar além dos limites. Numa das poucas vezes em que exagerei, os policiais me pararam e mostraram muita arrogância, pois me julgavam um cidadão português ( pelo que percebi, reina uma certa intransigência entre espanhóis e portugueses ). Quando disse que era brasileiro, mudaram a postura e o assunto se voltou para o futebol. Mesmo não estando atualizado sobre o mundo da bola, consegui me safar da situação com alguns comentários evasivos... e não tomei multa ! Obrigado, Rivaldo ! Campo de Estrelas Tudo começou com Tiago, irmão de João, um dos doze apóstolos de Cristo, que saiu da Judéia para a Galícia, província romana naquela época. Depois de sete anos pregando o cristianismo, voltou à Judéia ( hoje Palestina ) , onde foi preso e decapitado por ordem do rei Herodes. Dois discípulos, Teodoro e Atanásio, levaram o corpo secretamente de volta à Galícia. Lá, seu corpo foi enterrado em um lugar chamado Libredunnum por volta do ano 44 da era cristã. No ano 813, um velho ermitão viu luzes que pareciam descer do céu, como estrelas cadentes, sobre um local no campo. O ermitão constatou que no local ficava o túmulo do apóstolo. A notícia se espalhou e, após a construção de uma capela e um monastério próximos ao túmulo, a região se transformou em um dos mais importantes centros de peregrinação da cristandade. O ponto final do caminho, longo e cheio de perigos, passou a se chamar Santiago do Campus Stellae ou Campo das Estrelas, origem do nome Compostela. Em 1135 surgiu a primeira obra escrita a ser convertida no principal guia para os peregrinos. O texto descrevia em minúcias os trechos do caminho e incluía dicas, como a forma de se vestir para a caminhada: todo peregrino deveria ter uma capa para se proteger do frio e da chuva, um chapéu de abas largas por causa do sol, um cajado – para apoio em subidas e para a defesa contra cães ferozes ou ataque de lobos – e conchas típicas do litoral da Galícia. Essas conchas eram uma espécie de identificação do peregrino para a garantia de hospedagem pelo caminho. Hoje, ainda são um dos principais símbolos de Santiago de Compostela. Além de ótimas para acelerar, as estradas são tão seguras que, quando a noite chega, ainda é possível procurar com tranqüilidade uma pequena cidade ou vila, local ideal para se hospedar. Porém, antes de ir em busca de um hotel, cumpra outro ritual: entrar em uma igreja, rezar um pouco e, logo depois, achar um bar para tomar algumas cervejas. Nas pequenas cidades, o custo médio de hospedagem é de US$35. Comer na Espanha é outra atração. Lá não se come mal mesmo no mais humilde boteco. Só quem percorre o caminho a pé, de bicicleta ou a cavalo é digno de receber o diploma de peregrino. Mas dizem que todos os que chegam à catedral de Santiago de Compostela, não importa a forma de transporte, recebem o perdão de todos os seus pecados. Ou seja, você "zera" seu estoque de pecado. Por isso, assim que cheguei, após uma viajem de três dias, acendi algumas velas e fui perdoado ( creio ) por todas as bobagens que já fiz nessa vida. Para confirmar, deixei Santiago para trás em direção ao litoral da Galícia, ainda na Espanha. Queria percorrer o chamado "Caminho Inglês". Rodei mais 700 km, passando por La Coruña, Oviedo, Santander e Bilbao, no país Basco, chegando até Bayonne, França. Retornei pelo interior da Espanha, passando por Pamplona, até chegar a Porto, em Portugal, para conhecer o "Caminho Português", que começa lá. Retornei a Santiago para ter mais créditos quanto ao perdão dos meus pecados. Como fiz os três caminhos mais usados, penso que meu crédito seja alto. Pelo jeito, vou morrer sem conseguir pecar tanto... Brincadeiras à parte, essas viagens à Santiago me deixaram com o espírito renovado. Assim, me preparei para percorrer toda a Península Ibérica, pois ainda me restavam 16 dias para fazer uma das coisas que mais gosto: viajar de moto. Mas essa é outra história... João Gonçalves Filho, o "Gau", Especial para Duas Rodas O colaborador de Duas Rodas viajou com uma BMW R C cedida pela BMW da Espanha através da BMW do Brasil. FIM
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