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Relato de viagem

REVISTA DUAS RODAS N 156 – JUNHO – 1988 UM SONHO REALIZADO

Ushuaia

Chegar a Ushuaia, no extremo Sul do continente americano, era o grande sonho de João Gonçalves Filho, que conseguiu realizá-lo numa aventura de 12 mil km.
É meio dia. Não fico para o almoço. A Patagônia está me esperando. Beijo meu harém (quatro filhas, a esposa, a sogra, duas cachorras e uma arara ) e ligo a Honda CBX 750F, que ronca alto. Saio cantando pneu em direção à um sonho que pretendia realizar há muito tempo: conhecer Ushuaia, o ponto mais austral do planeta, no extremo Sul da Argentina.
Não consegui nenhum companheiro para esta aventura e como não queria adiar mais, resolvi encarar a estrada sozinho. Isso transformou minha aventura num teste de resistência, tipo um rali, onde eu queria tentar avaliar minhas condições físicas, pensando na própria aventura, até a Rússia. Desta forma, rodei até mais de 1.000 km num único dia. Apenas como termos comparativos, na minha aventura anterior ( Duas Rodas n º 150 ) para o Norte do País, rodei 11 mil km em 45 dias. Nesta aventura até Ushuaia eu percorri 12.000 km em 25 dias.
Logo no primeiro dia de viagem pude percorrer 980 km, saindo de Florianópolis, SC, até Chuí, RS, na fronteira com o Uruguai. Neste país a estrada é boa e a gasolina é melhor ainda. Preciso apenas tomar o cuidado com o trânsito em Montevideo, porque a idade média dos carros é de 20 anos

km 12 MIL Km
Localização
Patagônia
Dias45

PERIGO EM BUENOS AIRES


Chego a Buenos Aires, capital da Argentina, num clima de medo. Logo de cara alguns motociclistas me alertam que Buenos Aires é recordista em roubos de motos na América Latina. Outros exageram ao dizer que é a cidade onde mais se rouba no mundo. Segundo os latinos, cada moto grande de Buenos Aires já foi roubada pelo menos uma vez. Ao menos resta o consolo de que as motos são encontradas.
Por esse motivo, saio de Buenos Aires o mais rápido possível. Nas estradas asfaltadas, retas e planas, rodo a 160 ou 170 km/h e descubro que a autonomia desta moto é péssima. Nesta velocidade, o consumo fica por volta de 7 km/litro ! Precisava abastecer a cada 160 km.
Depois da província de Rio Gajego a estrada vira um inferno. O piso é de "aripio" (pedras soltas ) e a moto dança com os ventos laterais acima de 50 km/h. Sou obrigado a rodar a 40 km/h. Fico com vontade de jogar toda a bagagem fora para aliviar o peso. Rodei 18 horas direto em baixa velocidade. Lembro da minha aventura de Harley Davidson 1.200cc através da Amazônia ( Duas Rodas n º 16 ). A temperatura cai bastante e não há roupa que cheque para me esquentar. A única coisa que me mantém na estrada é a vontade de realizar este velho sonho.
Volto para as estradas de "aripio". A vibração é demais para a CBX 750F e as porcas começam a "abandonar o navio".
Várias peças se soltam e os dois faróis auxiliares se quebram. Graças à um conselho, resolvi instalar uma tela protetora no farol principal. Todos os carros que trafegam por esta estrada utilizam grades nos faróis e no pára – brisa por causa das pedras atiradas por outros veículos.

ENFIM, USHUAIA.

Depois de 270 km nestas estradas de "aripio", finalmente chego a Ushuaia. Meu corpo está molhado, frio, dolorido e sinto como se os ossos estivessem desconjuntados. Logo na estrada encontro um argentino viajando numa Honda XL 500, que irá me acompanhar por algum tempo. No hotel, caio na cama e durmo 14 horas.
Acordo com os braços doloridos por causa da estrada. Resolvi tirar o dia para passear. Esta viagem solitária acabou com todo o prazer de passear, conhecer pessoas. Eu sentava na moto e rodava, rodava, só parando para abastecer o tanque e o estômago. Agora, em Ushuaia, preferi dar uma volta no barco catamarã ( com dois cascos ) pelas ilhas e baías da Terra do Fogo no Canal de Beagle. Nunca vi tantos pingüins e leões marinhos. Dentro do barco realizai uma façanha inédita: tomei uma Brahma na Antártida. Ou seja, consegui uma garrafa de cerveja Brahma brasileira ( a cerveja deles é horrível ).
No dia seguinte amanheceu chovendo. Meu amigo da XL 500 disse que não dava para viajar com a estrada cheia de lama.
Fico pensando: acabei de realizar um velho sonho e os sonhos realizados perdem o sabor. Então para quê ficar aqui? Resolvo ir embora, com chuva mesmo, e sozinho.
Para "sentir" a estrada, fui até um povoado chamado Lapataia, a 19 km ao sul de Ushuaia, ou seja, é o último resquício de civilização antes de acabar o mundo.
Na volta, a estrada vai ficando cada vez pior. Fico preocupado com a resistência da suspensão traseira Pró – Link da CBX 750F, mas não aconteceu nenhum problema...
Atravesso o Estreito de Magalhães e... viva ! Asfalto novamente.
Seguimos em direção a Calafati, onde existe um lago com imensas formações de gelo, com até 60 metros de altura. No caminho encontrei dois japoneses em duas Honda XLV 600 Transalp, acompanhados por três carros e uma equipe de cinegrafistas. Conversei um pouco e descobri que eles tinham saído do Alaska, no extremo Norte do planeta, para chegar até Ushuaia, no extremo Sul, cortando as três Américas. Achei covardia tanto apoio, e eles nem sequer levavam bagagem nas motos. Fácil demais para meu gosto.
(N. do E.: durante a visita de Duas Rodas ao Japão, nosso diretor – editorial e redator – chefe, Josias Silveira e Roberto Araújo, assistiram a uma parte desse documentário na TV japonesa ).
Os parques nacionais na Argentina são ótimas opções para acampar. Aliás, saindo de Buenos Aires, qualquer lugar na Argentina é seguro. Pode-se até deixar a chave no contato da moto que não acontece nada.
Ainda na Argentina as estradas de asfalto são retas intermináveis. Minha disposição é bater meu próprio recorde de quilometragem diária e rodo acima de 170 km/h, para estabelecer uma marca acima de 1.200 km num dia. Mas o pneu traseiro já está no "osso" e, por motivos de segurança, diminuo o ritmo. Rodei "apenas" 1.058 km.
Quando chego novamente a Buenos Aires, procuro algum lugar para comprar um pneu traseiro, mas os preços são absurdos: 100 dólares pelo pneu uruguaio e 240 dólares por um Michelin francês. Preferi arriscar e rodar com um pneu careca até a fronteira do Brasil, onde telefonei para minha esposa e ela ficou de enviar um pneu novo pelo correio para a cidade de Santo Ângelo, RS. Fui até lá rodando bem devagar porque o pneu já mostrava a lona. Acho que ele só ficava cheio porque já estava de saco cheio de tanto viajar...
Depois de desmontar o pneu novo, abri o gás novamente. Agora falta pouco para chegar em casa e saborear aquele autêntico churrasco de recepção com os amigos. Sou recebido ainda na estrada pelo Afonso, um amigo que veio me recepcionar na entrada da cidade. O churrasco foi pela madrugada adentro e quando todos foram embora, comecei a pensar na próxima aventura: atravessar toda Europa, até a Rússia. Só falta conseguir companhia.
Alguém está a fim?

João Gonçalves Filho, o Gaúcho.
FIM


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